IBS e CBS: Reflexões sobre a Segurança Jurídica na Implementação do Novo Modelo Tributário
José Ribeiro Neto*
I – EXPOSIÇÃO DA MATÉRIA
A transição para o novo sistema tributário, referente ao IBS, CBS e Imposto Seletivo, deveria ser um processo exemplar de segurança jurídica, previsibilidade institucional e fidelidade absoluta à Constituição Federal.
Em vez disso, o que se vê é uma tentativa apressada e juridicamente irregular de antecipar competências, impor obrigações e simular cobranças tributárias antes mesmo da existência dos órgãos responsáveis por regulamentá-las.
E isso não é um detalhe burocrático: é uma afronta direta ao Estado de Direito.
Nas últimas semanas, a Receita Federal do Brasil (RFB) passou a publicar, em conjunto com o chamado “Comitê Gestor do IBS (CGIBS)”, notas técnicas que se propõem a orientar – e, em alguns pontos, praticamente determinar – procedimentos relativos ao IBS e à CBS em sua fase de testes.
O problema é que o Comitê Gestor do IBS não existe ainda, pelo menos “juridicamente”.
Sua criação depende da aprovação do PLP nº 108/2024, ainda em tramitação na Câmara dos Deputados, depois do seu retorno do Senado Federal.
Não há lei complementar instituindo a “personalidade jurídica” do Comitê Gestor do IBS, definindo sua competência, sua estrutura, seus integrantes e suas atribuições.
Ou seja: temos um órgão administrativo inexistente assinando documentos oficiais – as tais “notas técnicas” – que pretendem orientar a implementação de tributos que ainda não possuem regulamentação válida. É uma ficção administrativa perigosa.
É o que demonstraremos nos tópicos a seguir.
II – A violação direta ao princípio da legalidade TRIBUTÁRIA
De ressaltar que não há como suavizar a gravidade dessas atuações normativas açodadas por parte da RBB e do CGIBS.
A Constituição Federal e o Código Tributário Nacional (CTN) são claros: nenhum tributo pode ser cobrado sem lei específica do ente tributante que defina todos os elementos essenciais desse tributo, inclusive sua Regra-Matriz de Incidência Tributária (Paulo de Barros Carvalho), e nenhuma obrigação tributária acessória pode ser criada sem normas válidas integrantes da legislação tributária. Isso vale tanto para a cobrança do tributo quanto para quaisquer deveres instrumentais exigidos dos contribuintes.
As denominadas “notas técnicas” conjuntas, porém, tratam justamente do contrário. Estabelecem diretrizes operacionais e tentam antecipar exigências que deveriam nascer exclusivamente da lei complementar ainda em debate no Congresso Nacional, como fundamento de validade dessas exigências.
Na prática, o que se vê é um organismo estatal sem competência constitucional emitindo documentos como se já estivesse plenamente constituído.
É inadmissível. É ilegal. É inconstitucional.
III – Testes não autorizam A EXIGÊNCIA DE obrigações TRIBUTÁRIAS
A Emenda Constitucional 132/2023, com o objetivo de buscar eficiência na implantação operacional do novo sistema tributário, prevê um período de testes.
Mas testes não são obrigações. Testes não autorizam que contribuintes sejam obrigados a enviar declarações, emitir documentos fiscais fictícios ou aderir a sistemas ainda em construção.
Testes são exercícios voluntários, jamais instrumentos de imposição administrativa. A tentativa de transformar o período experimental em etapa obrigatória é uma distorção conceitual e jurídica que precisa ser denunciada.
De lembrar que tanto a EC 132/2023 quanto a Lei Complementar nº 214/2025 determinam que as alíquotas de 0,1% (IBS) e 0,9% (CBS) serão exigidas na fase de teste de forma simbólica, e não para aumentar a carga tributária, tanto que os seus valores serão dispensados caso os contribuintes do IBS/CBS cumpram todas as obrigações tributárias acessórias, ou que, quando efetivamente pagos, sejam ressarcidos em 2027 em forma de crédito.
IV – O risco institucional: normalizar o QUE É APENAS excepcional
Permitir que a Administração Tributária aja como se órgãos inexistentes já funcionassem é criar um precedente institucional devastador. Se um comitê que ainda não foi instituído pode assinar notas técnicas, ainda em que de forma conjunta com a RFB, por que amanhã não poderá editar resoluções, instruções normativas ou até regulamentos?
O que está em jogo não é apenas um detalhe do IBS ou da CBS. É a integridade do sistema tributário brasileiro. É a linha vermelha entre a administração pública e a usurpação de competência legislativa.
O atraso na aprovação definitiva e consequente publicação do PLP 108/2024 pelo Congresso Nacional não é justificativa plausível para o CGIBS editar atos normativos, a exemplo de notas técnicas, e impor o cumprimento de obrigações tributárias acessórias relacionadas com o IBS.
V – O papel do Congresso NACIONAL e do PODER Judiciário
O Congresso Nacional ainda não aprovou o PLP 108/2024. Portanto, não há Comitê Gestor, não há competência normativa, não há autorização legal para a emissão de qualquer ato administrativo relativo ao IBS.
A insistência da Receita Federal do rasil em publicar documentos em conjunto com um órgão inexistente não respeita o processo legislativo, ignora o poder moderador do Parlamento e atropela a Constituição Federal.
Se esse tipo de antecipação normativa prosperar, abre-se espaço para judicialização imediata. A própria lógica do Mandado de Segurança preventivo, voltado a proteger o contribuinte contra ameaças de exigências ilegais, mostra o tamanho da insegurança institucional gerada.
VI – Conclusão: precisamos de ordem antes de inovação
A reforma tributária é necessária e urgente. Isso é indiscutível.
O país precisa modernizar sua tributação, simplificar regras e reduzir o caos normativo que há décadas penaliza o contribuinte brasileiro no tocante aos tributos de consumo.
Mas reforma não significa vale-tudo. Não significa desrespeito às etapas institucionais. Não significa criação fictícia de órgãos públicos (cgibs). Muito menos significa impor obrigações fora da lei, seja em sentido estrito ou amplo.
Antes de implementar o novo sistema tributário, é preciso respeitar o sistema atual. Antes de criar o novo, é preciso observar os limites constitucionais, previstos, aliás, na EC 132/2923 e na LC 214/2025.
Se a transição para o IBS e a CBS começar justamente violando a Constituição Federal, por meio de supostos atos normativos – “notas técnicas” –, de autoridades sem competência legal, o que se pode esperar de todo o restante do processo relacionado com a transição?
O Brasil não precisa apenas de um novo sistema tributário. Precisa de um sistema tributário construído com respeito às instituições. Porque um imposto criado fora da lei não é um tributo e a criação de obrigações acessórias sem respaldo na legislação específica não tem validade jurídica: é um abuso, é arbitrário.
E contra abuso e arbítrio, o Estado de Direito não admite silêncio cúmplice, pois são danosos para os contribuintes e para a sociedade de uma maneira geral.
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*JOSÉ RIBEIRO NETO é Advogado Tributarista e Penal-Tributarista, Auditor Fiscal da SEFAZ/CE aposentado, Mestre em Direito Constitucional e Especialista em Direito Público, Constitucional e Tributário. Foi Vice-Presidente do CONAT/CE e Presidente da 2ª Câmara de Julgamento do CONAT/CE, além de Julgador de Primeira e Segunda Instância. Atuou, por mais de 20 anos, como legislador da legislação tributária cearense. É autor dentre outros, dos seguintes livros: “Regulamento do ICMS/CE Integralmente Comentado”, “Direito Tributário & Legislação Tributária do Estado do Ceará – Comentários, Doutrina e Jurisprudência” e “Comentários è Legislação Tributária e Processual-Tributária do Estado do Ceará”, além de inúmeros artigos sobre matéria tributária. No prelo: “Lei Complementar nº 214/2025 Integralmente Comentada”.